Acessibilidade digital e o cuidado do cultivo

#paracegover, Mulher sentada em um escritório banhada pela luz difusa do sol entre persianas.

“Pote decorado com visor para visualizar quantidade de alimentos”. Assim é descrito um produto em site de e-commerce. A consumidora não visual Vanessa Bruna pergunta: onde fica esse visor? Na lateral do pote ou na frente? Como é essa tampa? De pressão ou de rosquear? Para saber ela copia o link e envia para uma amiga visual via whatsapp e desabafa no vídeo: “Eu e minha amiga vamos pagar o mesmo preço por esse jogo de potes, porém eu tenho de fazer um esforço extra para saber sobre a descrição do produto. E estou falando de um site que tem acessibilidade para quem é cego poder realizar o pagamento e comprar.”

A declaração dessa consumidora demonstra que um conteúdo digital acessível a todas as pessoas vai além de verificar apenas os aspectos técnicos de codificação e segurança da informação, por exemplo.

Uma pesquisa realizada com pessoas de baixa visão sobre o uso de tablets indicou que o próprio botão físico de ligar e desligar o aparelho já representava um obstáculo por ser de formato e textura igual ao botão ao lado, que apenas ajusta o volume do som. (Kulpa, Cintia; Amaral, Fernando; 2015).

Outro estudo realizado sobre a rede social do Facebook para pessoas não visuais demonstrou que para conseguir enviar mensagens apenas para um círculo privado de amigos e parentes, os usuários tinham que realizar de 10 a 70 passos entre navegação, seleção de opções e confirmação de configuração. Isso coloca em questão o que significa “uso intuitivo”. Eles queriam participar e se sentir incluídos nas vivências de seus círculos de relacionamentos. Por isso faziam um esforço maior para aprender a utilizar essa rede. Vale destacar, que os usuários dessa pesquisa citaram espontaneamente o Twitter como uma rede social melhor projetada para o uso de pessoas não visuais.
(Pessini, Adriano; Citadin; Juciliene; 2013)

Informações obtidas em pesquisas científicas e depoimentos dos usuários são valiosos para que os times que projetam interfaces atinjam na prática o que preconiza o design universal:

  • Equiparação nas possibilidades de uso
  • Flexibilidade de uso
  • Uso simples e intuitivo
  • Captação da informação
  • Tolerância ao erro
  • Mínimo esforço físico
  • Dimensão e espaço para uso e interação

 

Assim, a experiência do usuário em primeiro lugar torna-se condição sine qua non (imprescindível) para se obter a satisfação na interação com um sistema. Um exemplo disso é um curso EAD que ofereça legendas e janela com intérprete de Libras precisa ter atenção ao fato de que pessoas não ouvintes precisam de um tempo maior de visualização de um tutorial, pois terão de dividir o foco visual entre a “tradução” do conteúdo e o conteúdo em si. O mesmo cuidado a respeito da carga cognitiva deve ser tomado para pessoas que “ouvem” o conteúdo, como ocorre com quem não enxerga.

Piérre Lévy, filósofo que volta sua atenção para a virtualização, comenta que algumas formas de mundos virtuais permitem quase cartografar em tempo real, os componentes topológicos, semióticos, axiológicos e energéticos de psiquismos coletivos. Para Lévy, a originalidade da virtualização trazida pela internet consiste em transformar o particular em uma problemática mais geral onde é dada uma ênfase ontológica. Ela permite investigar e descobrir uma clareira, um vazio de condições preestabelecidas, de onde podem emergir “novos graus de liberdade”. (Lévy, 2011;p.117; 18)

Lévy defende que essa potência trazida pela virtualização deve ser materializada no cotidiano das pessoas através de uma nova arte de hospitalidade, que humanize o Ciberespaço. Ele afirma que a programação cooperativa do software no ciberespaço ilustra de maneira evidente a “autopoiese” da inteligência coletiva, especialmente quando visa melhorar a infraestrutura de comunicação digital.
(Levy, p.116; 150)

Esse cultivo de sistemas mais inclusivos encontra-se em andamento e a academia está atenta. Construir interfaces com acessibilidade para negócios digitais, é um desses objetos de estudo. Um exemplo é a contribuição do núcleo de Interação Homem Computador, da Universidade Federal de Minas Gerais, que mapeou os benefícios para empresas que priorizam a experiência do usuário na jornada de compra:

  • Melhor posicionamento em mecanismos de busca
  • Alcance de um público abrangente, aumentando a base de clientes
  • Melhor manutenibilidade (característica de Qualidade de Software)
  • Menos rejeições e desistências, assim como diminuem as reclamações no Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC)
  • Por facilitar a jornada dos usuários e remover barreiras, a acessibilidade aumenta a possibilidade de recorrência nas compras

Assim, as conexões e sinergias entre as diversas contribuições da academia e do setor corporativo trazem um valioso contributo para a promoção da cultura da acessibilidade. Não como “colheita” estática de produtos ou serviços. Mas, como o cultivo permanente dessa nova arte da hospitalidade; que cuida do espaço virtual como um agradável gazebo, que todos podem adentrar.

Fontes: